sexta-feira, 18 de março de 2011

Zé da Silva


josé nasceu da silva, nasceu pobre, nasceu preto, nasceu franzino. Desde o ventre da mãe fora diagnosticada a anemia. A mãe, que nasceu maria, que viveu das graças, não pudera nada fazer. Alimentava-se como dava, vivia como podia, e, assim, sem cuidados, sem mimos nasceu josé. Aos cinco anos de idade caiu na rua, fraturou a perna e foi encaminhado ao pronto socorro. Lá o médico plantonista engessou-a, deu-lhe alguns comprimidos pra dor e mandou josé pra casa. Ao tirar o gesso a mãe percebeu que ele não voltaria mais a ser o mesmo. A perninha magra e preta, agora também era torta, josé manquejava ao andar e, ao correr, já não era mais tão rápido.
Pobre menino pobre, entre os coleguinhas pobres, sentia-se ainda mais pobre. Era excluído do futebol de meia, jogado no terreno baldio ao lado do lixão, de onde a mãe dele e de todos os outros, tiravam o sustendo.
José queria ser igual ao Jhonatan Fernando, filho de Adelaide, dona do bar onde os homens passavam a tarde jogando, bebendo ou cheirando e, à noite, recolhiam-se balcão adentro na companhia de meninas bonitas e outras nem tão meninas e nem tão bonitas.
Jhonatan Fernando era loirinho, seu cabelo era como os raios do sol. Tinha um olho azul que chegava a dar angústia! Parecia o fundo do mar. Sua mãe sempre escondera a verdade sobre a procedência do pai. Uns diziam que nem ela sabia quem era, outros diziam ser fruto de um relacionamento com um gringo que aparecia de vez em quando, vindo do estrangeiro a negócio no Brasil. Mas não importava o pai, o fato era que josé também quisera que seu pai, também desconhecido, deixasse-lhe a mesma herança que o pai de Jhonatan Fernando lhe deixara, a cor branca da pele, o cabelo de ouro, e olhos azuis do mar.
Aos doze anos de idade josé sentia ainda mais não ter tido pai branco. Saia aos bandos com seus colegas, procurando caridade pelas ruas, e Jhonatan Fernando, igual aos demais, não ganhava muita coisa, mas recebia sorrisos e afagos, as vezes até se propunham a adotá-lo. Mas josé, preto, josé manco, josé franzino, nada recebia. Quando se aproximava, ouvia os pinos das portas dos veículos sendo fechados. Quando iam à escola, uma vez ou outra, depois de várias insertas do Conselho Tutelar, as meninas enchiam a boca para pronunciar o nome de JHONATAN FERNANDO, ficavam a espreita para puxar conversa, fazer amizade. E josé da silva? Quem?
Certa vez, a escola encaminhou os meninos do time da rua para fazer teste na escolhinha de futebol do bairro. Adivinha! Jhonatan Fernando, que sempre conseguia se destacar no grupo, não foi escolhido, acharam-no desengonçado, sem muito jeito com a bola, mas Igor, primo de josé, que também era preto, fora selecionado e em pouco tempo estava brilhando em times juvenis de renome nacional. Pobre do josé, perna de pau e cocho, nada podia esperar, e já que, como os demais, não tinha muita cabeça para os estudos foi trabalhar na feira, quando conseguiu, enfim, aprender as quatro operações.
Aos quinze anos perdera a mãe que aparecera morta a facadas num quarto sujo do bar da Adelaide. José Saíra do bairro a vagar pela cidade. Perdera o contato com os colegas de rua, com os poucos conhecidos que tinha. Agora era mais josé da silva do que nunca, entre tantos outros. Invisível. Foi morar nos fundos do barracão da feira, onde o dono da barraca, seu patrão, ofereceu-lhe, muito amigavelmente, uma quarto sala, com banheiro público, à vinte metros do local, por um valor, que, apertando, josé conseguiria pagar. Já que o que ganhava carregando caixas de frutas e verduras, não era o que se podia chamar de salário. A solidariedade do patrão para com ele era tão grande que deixava que josé, ao final do dia, recolhesse as sobras das caixas de frutas e verduras descartadas pelos consumidores e as levasse para casa. Com isso o jantar estaria garantido.
Pouco durou o “sossego” de josé. Num sábado, dia de maior movimento na feira, o patrão descobrira que lhe faltara cinco reais na caixinha de dinheiro. O safado do josé foi escorraçado da feira, que lugar de ladrão é na rua. Saiu com a roupa do corpo, maltrapilho, que era essa a sua condição e sujo que era essa a sua realidade. Sem dinheiro, nem mesmo os cindo reais salvara. Se tivesse, como fora acusado, pego o dinheiro, teria como comprar um pouco de comida. Vai, José! Vai ser cocho na vida!
Andando sem rumo pela cidade, sem ter pra onde ir, mas também despreocupado por não ter a obrigação de voltar, josé deparou-se com um pequeno folheto trazido pelo vento, ao seus pés. E não é que os cabelos dourados de Jhonathan Fernado serviram-lhe de alguma coisa! O shampoo mostrado na propaganda, via-se, era da pior qualidade, mas devia ter rendido ao amigo algum dinheiro. E claro, a fama que logo poderia arrumar-lhe a vida. Lembrou, com saudade, dos tempos das peladas com bola de meia. Não que tivesse orgulho de sua situação, forçada, de gandula, já que seu maior desejo era estar em campo, mas alimentava a esperança de que faltasse um menino no time, e aí, quem sabe, não lhe chamariam para jogar. Lembrou de Igor, que sempre foi o artilheiro do time, esse nem trabalho de buscar a bola lhe dava. Seu chute era sempre certeiro. Agora o primo brilhava fora do país. Levou a mãe e os irmãos para morar num apartamento luxuoso de frente para o mar. Nunca mais teve contato com eles. Se os procurasse talvez nem o reconhecessem. José tinha também algum brio, não chegaria, na casa de parentes tão distintos assim, nessa situação, nesse joão ninguém, nesse zé da silva.
Foi então que conheceu Seu Jamil, que lhe ofereceu, assim do nada, uma bebida, quando ele se esgueirava pelos bares da cidade, na busca de algo para comer e onde dormir.  Jamil era um homem bom, ouviu sua história, ofereceu-lhe trabalho no bar, onde josé poderia também passar a noite, sob a mesa de sinuca. Travesseiro e cobertor foram trazidos depois. O trabalho no bar foi anestesiando-lhe as mágoas da vida. Dormia tarde e acordava cedo. Não restava tempo para lamúrias. Foi aí que apareceu André. O que ele ofereceu para josé trabalhar com ele aumentava em dez vezes o que Jamil lhe pagava. José virou traficante. Agora era chamado de Zé Granada. Sua condição era outra, sua perna torta nem era percebida, pois o brilho das correntes de ouro que usava no peito ofuscava a vista das mulatas da laje, seu carro do ano era vermelho, que junto com a cor preta da sua pele, anunciava sangue e luto às famílias de quem ousasse se impor a suas ordens. Seu físico franzino era compensado pelo forte arsenal que o acompanhava. Zé Granada experimentou o doce sabor do poder. Teve as mulheres que quis. Deu as festas que sempre quis participar. Comprou as roupas que sonhava usar. Mandou um monte de josé da silva calar a boca e mostrou a um monte de bêbado safado o que acontece com quem violenta mulher da vida. Tirou tudo de muitos velhos ranzinzas que exploravam trabalho infantil, e de quebra, mandava por fogo na barraca, muitas vezes se ouvia ao longe os gritos de terror dos pobres velhinhos ardendo em chamas.  Zé Granada sabia que agora era outro. Sabia que sua vida seri curta como fora curta a vida de josé da silva. No dia 26 de novembro de 2010 Zé Granada foi baleado pela Polícia Pacificadora que tomou o Complexo do Alemão. Seu enterro foi acompanhado de alguns curiosos e noticiado pela imprensa. Zé Granada virou estatística.